Diário de Chicama
Foto: El Zorro
Viagens de surf são,
por natureza, temperamentais. Você pode ter que passar uma noite miserável
dormindo no chão do aeroporto, pegar uma infecção intestinal jurássica, extraviar
a prancha, não entender a língua local, ou, principalmente, não ver as ondas
com que sonhou a vida inteira. São, numa palavra, um mergulho no desconhecido.
Em minha recente viagem ao Peru, realizei o antigo sonho de surfar a mística
onda de Chicama, a Machu Picchu do Oceano Pacífico. E já que meus amigos, todos
casados, não partiriam mais, resolvi encarar antigos medos e dar este mergulho
da maneira mais esseral, sozinho.
19/03, 07: 25. Hora do
desayuno. Por um erro da funcionária da cia aérea, o longboard e a mochila ficaram
em Lima. Saí do aeroporto de Trujillo furioso, mas pude dormir bem (o hotel é
excelente) e acordei me sentindo um pouco melhor. Só que o mar, já pequeno,
baixou ainda mais, e o maldito leite sem lactose para o café demorou 50 minutos
para chegar. Volto para o meu quarto cabisbaixo.Pela primeira vez na vida, você está em voo solo para outro país. Suas trips anteriores com amigos lhe deram um pouco de confiança, mas viajar em solitário é algo muito diferente. Uma vez que embarcou no avião, você está por sua própria conta, e se verá obrigado a usar tudo o que aprendeu: falar algumas palavras da outra língua, o que levar e o que deixar em casa, como funciona o procedimento do seguro, ficar de olho nas suas coisas, respeitar os locais, antecipar perigos. Cuidar do dinheiro, onde guardar o passaporte, não beber água da torneira, o que comer e o que não... E, claro, vencer o medo do mito que você próprio criou daquele lugar. Conforme o grande dia se aproxima, você repassa, mais uma vez, os detalhes, e se visualiza ouvindo uma música relaxante, um jazz, criando assim um estado mental onde pode se sentir em segurança. Não que o ato de viajar tenha muito a ver com segurança, mas sentir-se seguro é fundamental – quem quer ter um surto de pânico ou ligar para a mãe a 10.000 km de casa? Cada pessoa tem um jeito para confortar a si própria, e, por ter surdez severa desde criança, cedo tive que encontrar uma forma de me sentir confortável em meu intocável mundinho silencioso. E o meu método foi sempre o mesmo: um canto só para mim, um livro e uma barra de chocolate. Esta santíssima trindade foi, incontáveis vezes, o porto seguro no qual me abriguei enquanto lá fora o mundo desabava.
Na noite anterior
você mal consegue dormir, uma mistura de temor e ansiedade indicando que está
prestes a sair da zona de conforto. Mas de repente, as turbinas do avião
roncam, a aeronave acelera e então você respira fundo e sorri, pois o maior
medo já foi vencido: o de ficar no sofá de sua casa vendo outros surfando
aquela onda mágica na tela da TV de “alta definição”.
20/03, 09: 30. O mar
continua baixo, e apesar de o hotel ter pranchas à disposição, nem penso em
estrear nestas condições. Vou fazer um reconhecimento do vilarejo. Em frente à
uma antiga pousada, um velho senhor sentado numa cadeira me cumprimenta num
dialeto ininteligível. Fico sabendo depois que é o lendário El Hombre de
Chicama. Depois de visitar a surf shop local, compro algumas balas de chocolate
na vienda ao lado, enquanto bebo no
gargalo uma inca-kola. Agradeço e sigo meu caminho. E, depois de alguns minutos
caminhando, chego ao famoso penhasco do Point.
Numa viagem, como na vida, saber lidar com frustações é
essencial. Sem a sua prancha e com o mar flat, uma hora se torna claro que
praguejar de nada adianta. Então você decide aceitar a situação, relaxar, e
assim resolve desfrutar o que tem à mão: trava conhecimento com os outros
hóspedes e funcionárias do hotel, curte a piscina e o spa, faz massagem,
assiste um programa de TV em espanhol, lê os bons livros que levou. E, de
repente, a sua sorte começa a mudar: a prancha e mochila chegam, intactas. O mar começa a reagir. No fim de tarde alguém
lhe diz que pode ter algo em The Cape, depois da curva do Point. Na última hora
você decide ir, e assim que sobe no bote, uma felicidade contagiante toma conta
de todos, de você e dos seus dois novos amigos locais. Essa mesma felicidade
que você sentiu pela primeira vez naquele zodiac para Sandino, na Nicarágua,
voltou com força total, você está quase a explodir de alegria, e todos no barco
estão rindo o riso daqueles que sabem que pertencem ao mar. Você nem desconfia,
mas em alguns instantes, com o pico só para si, estará surfando a onda mais
longa da sua vida.
21/03, 21:00 . O swell
finalmente acertou, mas sem conhecer o pico e suas correntes, peguei poucas
ondas de manhã. No fim de tarde, o mar melhorou, a corrente diminuiu e pude
atestar a realidade da fama do Point, ao pegar ondas de cansar as pernas, mas
muito fáceis de surfar. Normalmente manobramos por instinto, mas a onda é tão
regular e perfeita que é possível planejar a sua linha, onde acelerar, onde
tentar algo radical, a hora certa de mandar um bom cutback, o cutback mais
redondo que acertei na vida. Muitas ondas depois, percebi claramente onde podia
melhorar, me concentrei nisso, e senti que meu surf havia evoluído.
Saboreio calmamente um
aperitivo, e enquanto não chega o jantar, vou conversando com os outros hóspedes, pessoas do mundo inteiro
reunidas ali pelo desejo comum de surfar a esquerda mais longa da Terra. Um
nativo recém-chegado sorri e me acena de longe. Fico sabendo que é o fotógrafo Jesús
Florian, o famoso “El Zorro”. Capturou algumas imagens minhas pela manhã,
quando não surfei bem, mas o que são algumas fotos ruins quando quem as tirou
foi um lenda materializada na sua frente? Vou dormir cedo, amanhã já é o meu
último dia aqui e quero aproveitar cada minuto.
Você já está completamente familiarizado com o lugar. O mito
deu lugar à realidade, e esta você gostaria que se prolongasse por muitos dias
ainda. Entre as séries você imagina porque razão - se é que existe uma -
aquelas ondas são tão absurdamente longas. Qual surfista no mundo teria pernas
para surfar esta onda até o fim? De tantas dúvidas que tinha antes de embarcar,
você pode encontrar algumas respostas, mas, aqui no Point, o mistério
fundamental permanece. Está no pôr do sol, em cada pequeno lagarto, em cada pedra,
rosto e onda infinita que você levará na memória, para sempre.
23/03, 23:30. Finalmente,
em casa. Depois de 24 hs de viagem e mais uma noite terrível no aeroporto,
tenho o prazer de dormir novamente em minha cama. Com o rosto castigado, os pés
queimados e os lábios rachados do sol, o corpo esgotado e cheio de hematomas. Poucas
coisas na vida se igualam à sensação de enfrentar um grande medo, encarar o
dragão, e chegar em casa vitorioso ao fim da jornada. Depois de um bom banho
quente e já com a cabeça no travesseiro, sinto gratidão pela minha vida e uma
estranha paz enquanto adormeço, já pensando no destino da minha próxima
surftrip.
Texto publicado em versão editada no portal Waves, o maior site especializado em surf do Brasil:
http://waves.terra.com.br/waves/expedicao/barca-da-galera/diario-de-chicama.
Texto publicado em versão editada no portal Waves, o maior site especializado em surf do Brasil:
http://waves.terra.com.br/waves/expedicao/barca-da-galera/diario-de-chicama.
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